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Texto de Andréa Pachá, Escritora e juíza

Com A roupa do corpo, Francisco Azevedo completa a tetralogia de uma obra que poderia ser resumida como um Elogio à Humanidade, ou uma Ode à Delicadeza. Escolher personagens e caminhos que afirmam o amor, o acolhimento e o cuidado tem sido a especialidade do autor. Longe da ingenuidade otimista, Francisco opta pela essência mais luminosa do ser humano, com todas as complexidades e contradições. O olhar afinado de quem procura aprender e se aprimorar na escuta do outro.

Conflitos nascidos de encontros, desencontros, fragmentações e recomposições familiares, matéria pulsante nos textos, propiciam o compartilhamento de uma memória comum e de um destino coletivo que nos irmanam e aproximam.

“Todos, sem exceção, vamos deixando partes de nossa história pelo caminho. Com alguém ou em algum lugar, largamos um pedaço aqui, outro ali, até o fim”, constata Fiapo, o protagonista que, com suas lembranças e histórias, nos leva à travessia desse Brasil contemporâneo, nos últimos cinquenta anos, em uma caravana em busca de si mesmo.

Com ele, seus caminhos e relacionamentos, acompanhamos as infinitas possibilidades que cabem em uma vida, quando dedicada à compreensão da alma. Entre os grandes movimentos planetários e os marcos históricos, a vida cotidiana acontece. É entre o nascer e o morrer que amamos, odiamos, nos ressentimos e nos reconciliamos. “Nada é banal. E não existem pessoas comuns”. “Podemos não perceber, mas tudo nesta vida é pura mágica”, como nos lembra Francisco.

Para os veteranos leitores, o prazer será triplicado. Personagens de O arroz de Palma, Doce Gabito e Os novos moradores reaparecem e apontam, de forma inexorável, os vínculos que nos constituem e nos acompanham pela existência.

Para os que iniciam essa viagem entre o Rio de Janeiro e as cidades de Convés e de Santo Antônio da União, rumo ao ano difícil e desafiador de 2020, que nos confrontou, a todos, com o imponderável e com o desamparo, Francisco nos remete ao realismo mágico de García Márquez, que na sua autobiografia ensina que a nostalgia apaga as lembranças ruins e aperfeiçoa as boas.

Na contramão da irracionalidade e do avanço do discurso do ódio e da intolerância, A roupa do corpo é um sopro de esperança e é a essência daquilo que temos de melhor.


Trechos do romance

1

“Papai era homem de bons modos, mas não abotoava a camisa. Mamãe o censurava por andar daquele jeito descomposto, e a resposta que ouvia era sempre a mesma: Botão é que nem filho, não se prende em casa, maldade. Além do mais, é saudável manter o peito exposto, aberto. E o coração, ventilado. Mamãe desdenhava – filosofia de bolso, falação barata. Para embaraçá-lo, perguntava se a regra se aplicava às mulheres. Ele se ria e lhe dava beijo demorado, de tirar o fôlego. Era claro que se aplicava! O mundo seria bem melhor e mais belo se elas também se desabotoassem”!

2

“A vida tem sido pródiga em me ensinar por meio de companhias femininas. Certo dia, quem sabe, escreverei merecidíssima ode às mulheres. Nelas, a salvação, mais que a perdição que rezam as tantas lendas e religiões. Nelas, o regaço onde me abrigo e, ao mesmo tempo, o empurrão que me lança na aventura – abençoada contradição”.

3

“Penso que o mistério da vida está intimamente ligado ao mistério das roupas e dos panos”.