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O Arroz de Palma fala de família. Considerada falida nos anos 60 e condenada ao desaparecimento, a família situa-se, agora, neste início do século XXI, como uma sólida instituição. Surpreendente? Nem tanto. Embora sacudida por radicais transformações de comportamento, ao longo das últimas quatro décadas, a família tem sabido superar suas deficiências, passar por testes dificílimos e, com base em diálogo mais franco, obter um maior entendimento entre seus membros: a aceitação do sexo antes do casamento e da homossexualidade, a união entre pessoas de religiões, raças e níveis sociais diferentes, a possível amizade entre casais que se separam e a natural convivência entre filhos de casamentos diferentes são apenas alguns exemplos de como essa instituição tem sabido evoluir e responder a novos desafios.

Embora ainda com resistências e intolerâncias aqui e ali, e apesar de aparentes sinais de fragilidade, a família apresenta-se hoje como a instituição mais credenciada para reger de forma responsável as mudanças que a sociedade vem exigindo. Em O Arroz de Palma todos esses temas e mudanças estão presentes. Antonio, o narrador da história, é naturalmente envolvido por elas. A história pretende mostrar que, apesar de todos os seus erros e tropeços cotidianos, a família busca se aprimorar. Ao se empenhar pelo acerto, essa milenar instituição parece querer provar que nós, seres humanos, pelo próprio instinto de sobrevivência, estamos fadados ao entendimento.

A história

O Arroz de Palma acontece em 2008, quando Antonio, o narrador, já está com 88 anos e prepara um grande almoço para comemorar os cem anos do casamento de seus pais. Os irmãos, já octogenários como ele, e todos os seus descendentes comparecem à celebração. O enredo ocorre ao personagem em forma de lembranças isoladas. O arroz que, em clima de realismo fantástico, serve de fio condutor, é bastante simbólico. A trama tem início no dia 11 de julho de 1908, em Viana do Castelo, Norte de Portugal, no casamento de José Custódio e Maria Romana. Terminada a cerimônia, o arroz que desaba sobre os noivos é torrencial, chuva branca que não para. O cortejo segue em festa pelo vilarejo, mas a romântica Palma permanece ali, feliz com todo aquele arroz espalhado pelo adro da igreja. Muito pobre, decide com entusiasmo que aquele é o seu presente de casamento para o irmão e a cunhada. No cartão, escreve:

“Este arroz – plantado na terra, caído do céu como o maná do deserto e colhido da pedra – é símbolo de fertilidade e eterno amor. Esta é a minha benção. Palma”

Infelizmente, o arroz, dado com tanto amor, resulta na primeira briga do casal. A partir daí, por quatro gerações, todas as disputas, os conflitos, os dramas e as alegrias da família giram em torno do arroz.

 

As raízes

O Arroz de Palma fala de nossas raízes lusitanas. Não do colonizador, mas do imigrante. Da gente simples, honesta e trabalhadora que veio em busca de dias melhores em terras brasileiras. Sempre confundimos a figura do colonizador com a do imigrante. Talvez, por isto, haja tantas histórias, filmes e seriados sobre italianos, alemães, japoneses, árabes e outros povos que imigraram e nada ou quase nada sobre portugueses. Esta história fala da saga de uma humilde família portuguesa que chegou ao Brasil cheia de sonhos e projetos e que, transplantada neste solo, com muita luta e espírito de superação, aprofundou raízes, cresceu e deu frutos.

Ainda no que diz respeito ao tema da imigração, O Arroz de Palma mostra essa necessidade de voltar às raízes. Hoje, quando tudo é questionado e se torna relativo, precisamos de pontos de referência, modelos que nos transmitam um mínimo de certeza. Ir às raízes, mais que olhar para trás, é olhar para o fundo, para o que não está na superfície. É olhar simbolicamente para o que nos alimenta. É, enfim, tentar entender o que se passa conosco com base também na experiência ancestral, tão rica e tão vasta.

Carta de amor, ano de 1898

Interesse pelos ancentrais

Fico alegremente surpreso com o fato de que, independendo de idade ou classe social, as pessoas se interessam cada vez mais pela ancestralidade. Querem saber nomes de antepassados, a ascendência e a origem do sobrenome. Na internet, já há sites que criam e desenvolvem gigantescas árvores genealógicas. E entendo isso como uma busca afetiva – o que se quer é a informação caseira sobre o parentesco e não a descoberta de eventuais origens nobres.

Avós paternos

 
Seguem dois trechos do romance:

cartas e canetas

Isabel e eu vivemos o tempo das cartas escritas à mão e com caneta tinteiro. Tempo em que, destinatárias, as virgens solteiras eram Senhoritas! É, Antonio. É para rir mesmo. E isto foi ontem! Ontem já sem h! Comprávamos blocos de papel aéreo, íamos aos Correios, lambíamos os selos e as bordas dos envelopes. Ansiávamos pela resposta que, se viesse a jato, levaria pelo menos duas semanas. Todo dezembro, por causa dos cartões de Natal, éramos obrigados a enfrentar filas quilométricas para enviar os votos de Boas Festas. A chegada das canetas esferográficas causou furor. “De jeito nenhum eu uso!”, “Você é atrasado!”, “A letra sai péssima!”, “Sai nada! E não borram!”, “Borram, sim. Não prestam, nunca terão a categoria de uma tinteiro!”, “É questão de tempo, vão ganhar o mercado!”, “Pode tirar o cavalinho da chuva. Envelope sobrescrito com esferográfica, imagina!”.

As cartas que Nuno me enviava da Europa em 68 já eram escritas com esferográfica. Eu resisti o quanto pude, e fui me mantendo fiel à minha Parker 51, mas Isabel logo aderiu à nova moda – muito mais prática, sem aquela aporrinhação de ter de encher a caneta a toda hora e, melhor de tudo, o fim do mata-borrão! Nestes pontos, eu concordava com ela. Sem dúvida alguma, a carga de uma esferográfica durava. Mas que a letra saía feia pra burro, isso saía. Hoje, Bernardo rola de rir com a boba polêmica. Diz que equivaleria, talvez, a se discutir o tipo de fonte a ser usado nos e-mails!

chegada à capital federal

Pensão familiar. Quartos para Cavalheiros. A recepção não é das melhores, mas a acolhida é. Contradição nenhuma. A recepcionista e eu estamos felizes. Será talvez a sorte estarmos os dois assim neste ânimo. Será talvez o dia.
“É aqui que eu assino?”
“Aí mesmo.”
A assinatura me dá direito à chave e às boas vindas. As malas, eu mesmo as levo. Na placa do chaveiro, o número onze. Pé direito alto, escada de madeira, sonho de Jacó, segundo andar, terceira porta à esquerda. Nada me incomoda. Nem a cama, nem o colchão, nem os lençóis. Vejo poesia nesta pobreza específica, me aconchego neste desconforto franciscano. Sou capaz. O único banheiro fica lá fora no corredor, terei de dividi-lo com outros hóspedes. Que mal há nisto se a minha janela dá para os Arcos da Lapa?!
“Deixa as malas aí, Antonio! O cansaço da viagem, pra depois! Uma água no rosto é o quanto basta! Rua, homem! Anda! Vai ver coisas! Rua!”
Não penso duas vezes, me obedeço. Abro a porta com determinação e me ponho daqui pra fora. Vinte e um anos. Hora de saber se terá servido tanta leitura. Sustos exclamativos! Estarei mesmo em 1939?! Terei chegado finalmente ao século XX?! Jornais e revistas! Quantos! Bondes elétricos, fagulhas, gente amontoada nos estribos, trilhos! Automóveis pretos reluzentes, buzinas fanhas, burburinho de ruas e cafés – como me é possível não conhecer uma só alma?! Século XX, com certeza! Praças grandiosas, avenidas que se perdem no horizonte, monumentos! Reconheço todos eles e me emociono! O Palácio Monroe, a Biblioteca Nacional, o Museu de Bellas Artes, o Theatro Municipal! Estarei louco ou o Thezouro da Juventude ganhou vida?! Por que as ilustrações do Lello Universal me aparecem assim animadas e sem as legendas miudinhas?! Por que respiro tão fundo?! Por que esta tonteira alegre e colorida?! Por que esse povo na rua ao mesmo tempo?! Estará todo ele à procura de esmeraldas?! Esbarro distraído no ombro que vem em sentido contrário.
“Perdão!”
O terno branco de chapéu Panamá mal se volta para mim, aceita apressado o pedido de desculpas e lá vai – febril bandeirante à procura de riquezas.

 


LEIA TAMBÉM o texto “Família é prato difícil de preparar”, o mais conhecido trecho de “O arroz de Palma”